quinta-feira, 29 de outubro de 2015

É com a morte que me lembro da vida

Apenas me lembro vivo quando sou assolado pelas foices da morte. Consigo-me então lembrar da minha existência e, mais ainda, da minha consistência orgânica, ditada pelas regras biológicas de um principio e um fim. Lembro-me que pouco mais sou que um fluido comprimido entre barreiras de osso, musculo e pele numa organização que ainda hoje faz maravilhar qualquer curioso pela sua harmonia e fluidez. Um liquido em transformação constante, revolto no seu interior, que mantém a outra parte não material que somos nós ou aquilo que é a nossa consciência. É com a morte que me lembro que o tão perfeito sistema foi desenhado para falhar um dia. Que a vida é um janela aberta num dia de verão, mas que deve ser fechada ao cair da noite para evitar o esfriar do anoitecer.

O meu avô costumava dizer que “andamos aqui a arrastar a carcaça”. Pois se de facto nos tornamos ilimitados pela nossa mente, somos ainda dependentes desta matéria que nos foi emprestada com um prazo de validade do qual não sabemos adivinhar e com o qual não podemos contar. Uma eternal dúvida se de facto um fim é um fim, ou se um fim é um inicio, tal como o Outono nos leva as folhas para mais tarde nos recompensar com outras cores em tempos mais primaveris. Se pelo menos pudéssemos fazer planos calculados Segundo o dia em que fica então terminada, pergunto-me como seria então a vida. Aliás, pergunto-me agora se, mesmo não sabendo, como devo planear a minha vida se os seus fios são tão frágeis como as sementes de dente-de-leão, mas no entanto nos agarram tão fortemente à terra pelas raízes mais fortes de uma árvore que parece tão frágil.

Dizem que a morte é apenas mais uma etapa desta viagem. Se assim o é, devo dizer que desconheço o seu destino e começo a duvidar de que malas hei-de levar. E se o destino é o nada, então qual o propósito de sequer as fazer? No fundo será como partir num comboio sem destino, sem saber as paragens e chegar ao final da linha sem saber, com malas vazias, pois já não lembramos, nem sabemos lembrar o que nelas havia. Se assim for, a morte é injusta, mas pior ainda será a vida que nos mostrou a sua beleza para que no fim nem sequer sejamos capazes de a lembrar. Uma fugaz visão da luz, como o homem da caverna que certamente depois de ver a Luz, nunca mais se contentará com a sombra.


Nas manhas de verão, voltamos a abrir a janela para deixar entrar o Sol que nasce de manha, na esperança que nos aqueça o coração esfriado pela geada. Talvez neste fugaz intervalo entre o amanhecer e anoitecer possamos ver as Luzes que pelo mundo brilham. E que neste incessante pulsar dos dias fique sempre a esperança de uma Primavera no fim de um Inverno rigoroso.

segunda-feira, 21 de setembro de 2015

Falsas memórias

Quantos jogos de verdade e mentira fazemos, tal e qual como um jogo de xadrez connosco próprios, para nos cegarmos de uma verdade mais difícil de acreditar? 

Será que podemos dominar racionalmente o coração? Somos senhores da nossa razão, soberana sobre os sentimentos que nos assolam e nos consomem num crescendo de agonia e pavor face à impotência de sermos incapazes de domar esse tão selvagem animal que facilmente se desprende das correntes da racionalidade que tão bem arquitectadas foram? 

Ficamos eternamente presos aos prazeres que outrora sentimentos, de tal forma encruzilhados numa teia sem fim de sentimentos, agarrados à nossa memória por raízes mais fortes que centenárias árvores que testemunharam o passar dos tempos pacientemente percorrendo todas as primaveras e invernos, das mais belas aos mais rigorosos, respectivamente, que parece já não sabermos o sabor destes. Passamos a associar os tão estimados prazeres às memórias daquela pessoa, ou daquele tempo em que a Luz era mais clara e a Escuridão menos arrebatadora. Porque o amor tem o poder de nos fazer ver este mundo com mais ânimo, que por vezes se apresenta tão desfocado e desprovido de cor, que a ideia de o vivermos todos os dias nesta solidão de alma é mais aterradora que a própria morte. 

É então que mergulho no ridículo de pensar de mim para mim naquela rua, naquela roda-gigante, naquela música sem sequer ter oportunidade de prender de novo o indomável animal que teima em se escapar por entre os interstícios de mim mesmo. O amor é um vírus que nos consome os nutrientes na sua fase proliferativa, deixando-nos embriagados num febre temporária, até esta desaparecer e ficarem os resquícios dos seus competentes e finalmente cair na dormência, ou seja, sem nunca sair do nosso corpo. De tempos em tempos, como um vulcão pensado extinto, volta para nos assombrar o sistema imunitário. 

No entanto, após visitar lugares que se cristalizaram na minha mente como sagrados e grandes pedaços de um sentimento, igual àquele amigo que não desejo rever, apercebo-me que já não são os mesmos. Que os mesmo lugares são agora outros disponíveis a novas memórias e que o que, tal como no famoso cemitério dos famosos, o Père-Lachaise,  onde já não se encontram as pessoas, mas sim um pedaço quase invisível do que elas foram, chega-se à conclusão que a ansiedade de reencontrar estes lugares rapidamente se apaga com um sopro como a chama de uma vela ao dormer. E, na verdade, tal como a ansiosa espera de sentirmos algo com as campas daqueles que admirados, sentimentos nestes locais outrora cristalizados exactamente isso, nada. E hoje esses mesmos sentimentos que se apresentavam como os próprio Atlas do nosso parasita sentimental, da nossa obsessão pelo um passado que foi perfeito, são hoje apenas túmulos, estátuas, raízes e pedaços de pedra abandonados num lugar que já não é o mesmo. Fico aliviado por saber que o tempo, tal como a Justiça, tem os olhos vendados, castigando imparcialmente. Consigo ver as cicatrizes que carrego na cara desses sentimentos que tão estimáva e penso: quando é que eu me dediquei a amar tanto isto? Afinal, de facto, o amor e os seus sentimentos são passagens regularmente acompanhadas de delírios da nossa percepção, fotografias tiradas com os olhos durante uma viagem de comboio em que os pormenores se apresentam indistintos e desfocados pela velocidade da viagem. Voltando atrás aquele tempo vejo o quão ignorante era e isso faz-me lembrar duas coisas: o quanto cresci e me expandi como um gás compresso numa pequena botija e quanta ignorância tenho ainda a perder até ao fim da minha vida. Ai que vontade de ver todos os pores do Sol, de acompanhar o principezinho na sua viagem pelos planetas e poder sentar-me e levanter-me para ir vendo um constante pôr do sol no seu planeta. Que liberdade!

sábado, 8 de agosto de 2015

De um lado para o outro.

Enquanto finjo ser um malabarista do meu próprio corpo numa viagem oscilante entre dois carris de ferro presos ao chão questiono me sobre a vida de quem me faz companhia. Cada um de nós leva consigo uma série de bagagens intermináveis que talvez possam passar despercebidas num primeiro olhar mas que facilmente fluem até nós como água num milagre osmotico de sentimentos e sensações escritos num código tão antigo quanto a nossa espécie.

Esta bagagem pessoal prende se na cor da pele das crianças negras que se sentam ao meu lado, com o seu cabelo encaracolado e as suas caras curiosas, cheias de vida e verdadeira felicidade. Aquela ingénua de quando nada se sabe porque pouco se viu ou pouco se soube ainda. E assim se vão divertindo a tirar fotos a si próprios com caras de tigre ou leão enquanto o pai, livre como todos os outros passageiros, carrega ao pescoço uma corrente de elos metálicos que outrora poderiam ter outro significado mas hoje é apenas um adereço da Dolce&Gabbana, aproveita o lugar sentado para dormitar. Enquanto me distraio pela trepidação vejo uma idosa, sentada duas cadeiras à frente, que veste umas roupas largas e soltas com padrões orientais. Poder-se-ia dizer que sobre ela se abate todo o cansaço de uma vida. Por detrás dos seus óculos elípticos existe um peso que faz tombar os seus olhos intervalado pelo esforço inútil de os manter abertos e desportos ao mundo. O peso vence mesmo sob o burburinho atrevido que se faz sentir na carruagem. E nem mesmo o som das crianças atrás parece ter efeito perante o embale da viagem. No entanto, nem o entardecer do dia, com as suas cores mais quentes reflectidas nas paisagens bucólicas que intercalam uma civilização da outra, nem o cansaço físico que finalmente encontra descanso nos estofos azul-turquesa do comboio parecem vencer a senhora de cabelo cor de trigo que se encontra justamente sentada ao lado da personificação do sono. Pelo contrário esta leve senhora, claramente uma turista, mas não de longe já que fala francês fluentemente, traz vestido um calção branco curto com uma camisa às riscas azuis e brancas. Tão profundamente posta em si mesma quase sobre um código de estritas regras, são poucos os músculos da sua face que se mexem face ao ambiente irrequieto que agora se faz sentir ou tudo o resto que esta viagem proporciona. Delicio me com a sua calma inviolável e a sua simplicidade tão complexa que lhe fez escolher uma pulseira de pedras azuis e transparentes que combinam com os seus olhos azuis safira, também estes cansados mas de uma forma diferente da sua vizinha.

Pergunto o que pensarão eles de mim enquanto penso neles e em todos os outros que já entraram e já saíram. Sempre associei viagens de comboio à própria vida. Fico aqui a assistir a entrada e saída das pessoas sendo tocado por elas por laços invisíveis tornando me eternamente ligado por frágeis fios de seda. Afinal de contas que poderá ser a vida senão mesmo uma viagem de várias cores e sentimentos. Um cruzar de vezes, com reencontros esporádicos. Uma viagem de várias paragens em que todos sabemos o início e o destino, sem saber o percurso, mas sempre com a certeza de poder apreciar quem viaja connosco e quem nos gentilmente oferece sorrisos sem esperar nada em troca. Não tarda nada já saímos na última estação.

terça-feira, 21 de julho de 2015

Talvez morrer seja devolver algo que pedimos por empréstimo.

Por vezes acredito que só consigo ser feliz quando estou triste. Talvez assim faça sentido esta dualidade de forças contrárias, outrora explicadas na física e as suas leis. Se existe uma força, existe outra contrária. Os momentos mais felizes quase sempre são resultado da ausência da infelicidade. Tal como a saúde é um estado transitório da doença, como dizia o meu Avô. Engraçado como parece que andamos todos a fazer coisas contrárias àquelas que queremos ou mesmo cultivar imagens de nós próprios que não são aquelas com as quais nos identificamos ou queremos que sejam reconhecidas pelos outros.

Tal como quando duas forças de sentidos contrários se anulam quando os seus valores se igualam, também nós parecemos não nos movermos no espaço e no tempo, presos num referencial, numa translação estática, sem sentido, perdidos pela falta de moção. Num jogo de forças neuronais, qual vence? Serei puxado para um dos lados ou simplesmente flutuo pelas minhas memórias, estagnado, gravitando entre as lembranças, num país que já não aparece nos mapas e que figura apenas em livros de História?

Sempre lamentarei a vitória só corpo sobre a minha mente, ou da minha mente sobre o meu corpo. Ainda não sei distinguir. Talvez de facto aqui gostasse que a força resultante foça nula e que a soma dos meus pensamentos fosse igual a subtracção da minha componente orgânica, à qual todos nos achamos dependentes até ao fim da sua função. Ora aqui fica evidente que o corpo ganha este jogo de regras subtis, uma vez que toma decisão sobre o seu fim, mesmo que a mente não tenha encontrado em si o mesmo destino, a mesma decisão de término. Ou talvez será de facto a mente que, ao se enrolar em si própria num novelo sem pontas, acaba por dar vários nós ao corpo que gentilmente os vai tentado aceitar e resolver, talvez mesmo se adaptar até já não haver solução.


Acredito mesmo que somos invariavelmente a resultante de todas estas forças e que elas não se aplicam a nós, como a tudo o que envolve. E que por cada acção que praticamos, um outra é desencadeada numa cascata de acontecimentos que pouco ou nada somos capazes de prever. Tão fácil como saber que por cada semente que plantamos, mais oxigénio do qual somos dependentes estará mais disponível. Talvez morrer seja apenas devolver algo que pedimos por empréstimo. 

domingo, 7 de junho de 2015

O céu azul da Holanda


Enquanto uso a relva como berço para as minhas viagens entre um estado meio desperto, meio entorpecido, encontro-me diante uma bela pintura holandesa, coberta pelos seus tons subtis entre cinzentos e brancos que cobrem este céu de Primavera tímida, pintando aqui e ali com o borratar de pincel que confere às nuvens um face indefinida, amorfa, mas com um carácter celestial e angelical, tal como dois polos do mesmo corpo celeste, fazendo destas senhoras o motivo do meu reparo inicial. Deito-me a ostentar esta gratuita beleza e também as outras belezas – aquelas esquecidas e apagadas pelo peso das cidades. É então que consigo perceber a dança das cores nas telas das pinturas dos grandes artistas Holandeses; dos traços cuidados, fluídos que cantam o som do vento rodopiante que faz avançar as nuvens, mudando a condição atmosférica ao mesmo compasso presto usado pelo mar para fazer avançar as suas ondas sobre o pálido areal.

Sinto a relva a tocar-me o corpo. Sinto-o como uma comunhão com a Natureza há muito perdida entre o homem e aquela que o criou. Ao deparar-me com as nuvens, compreendo também os seus movimentos que aos olhos desatentos que pelo céu passam, poderão julgar ser aleatórios, mas que com o cobrir da luz do Sol pelos seus véus brancos, num intervalo de tempo suficiente para observar todos os detalhes agora revelados pela sombra, rapidamente percebe-se que as nuvens, tal como eu e a relva que me amortece, aproximam-se timidamente umas das outras, apenas se tocando e eventualmente se fundido, se assim se sentirem dispostas ou o vento da vida o ditar. Tal como as nuvens – essas massas de ar deambulantes, aparentemente semelhantes entre si, dispostas num céu de diferentes tonalidades de azul, amorfas e indistintas – também nós nos governamos (ou somos governados) por estas regras invisíveis, tocando a massa amorfa dentro de um outro, apenas quando uma brisa mais forte de vento se faz ressoar sobre o prado verdejante, numa tarde de Sol, sobre as camas de Natureza que nos acolhem na pequena clareira verde.

É então que fecho os olhos a este mundo para a seguir abrir a um outro. Se a viagem anterior pode ter parecido interessante, a que se seguiu transforma a primeira numa experiência completamente banal. Dormitar ao sabor do som de melros, pardais, cigarras, abelhas, entre outros seres vivos, todos ocupados com o seu próprio microcosmos, com os seus fazeres preocupados e sistemáticos, permite-nos viajar para lugar incerto, sem malas, sem hora de ida ou de volta. Uma viagem que não segue as dimensões a que estamos sujeitos e projectados, onde nem o impiedoso tempo nos faz escravos e onde os limites são ilusões. Neste estado de dormência não posso viajar-me pelas nuvens, mas sê-las e pintar-me com o pincel de pêlo de boi. Pincelar-me ao tempo de tons brancos sobre o céu e fazer-me voar ao sabor do meu vento, fundindo-me e separando-me a meu bel-prazer, criando a minha própria linguagem subtil, o meu próprio admirar de um outro mundo em que as minhas asas são lágrimas do céu e os raios de sol abatem-se sobre mim numa apetitosa sensação de paz e …

É então que acordo entorpecido e confuso, pois sempre que se faz uma viagem, seja ela qual for, o acordar é seguido pelo desconforto de não se saber onde está. A luz decomposta pelos seus raios de Sol ainda me fere os olhos e é então que vejo lá em cima aquelas brincalhonas. Já não são as mesmas, agora outras, com novas formas e feitios. Poderia olhar para elas o dia todo. Apesar do sorriso imposto pelas novas, não consigo deixar de ficar triste pelas que já foram. Como gostava delas.

domingo, 26 de abril de 2015

Escolha

Sê brando comigo.
Não escolhi ser assim.

Gostaria de poder dizer que sou este e aquele, mas afinal de contas, sou mesmo isso, nada.
Um nada que é um todo. Um todo cheio de vazio no seu interior.

Estou partido em vários pedaços, retalhos de uma ideia, de um pensamento.
Mas até a praia paradisíaca é composta por mil grãos de areia.

Eu não escolhi ser assim.
Não escolhi ter o reflexo que vejo na poça de água.
Não escolhi  sentir isto, ou aquilo, ou nada.
Não escolhi fechar os olhos quando não queria ver.
Não escolhi amar, nem morrer.

Não provarei a dor que há em mim.
Deixarei passar como faz uma bela espectadora

Deixarei o vento soprar, pois ele sabe para onde vai e eu não.
Deixarei a chuva molhar e lavar o tempo.

Eu não escolhi ser assim.
Um todo que é nada constantemente.
Um chorrilho de disparates com sentido,
Um novelo sem ponta ou fim, emerenhado em si próprio,
Sofucado pelo seu próprio peso,
Em toneladas de pensamentos turvos,
Outros escuros e outros ainda mais escuros.

Eu escolhi ver. Escolhi ouvir. Escolhi provar.
Escollhi fazê-lo em frente, sem que paisagens de trás me distraissem.

Quando me voltei, segui em frente.
Não deixei mais espaço ao olhar, nem ao pensar.
Porque se chorasse mais, faria oceanos.
Se pensasse mais escreveria livros.
Se me demorasse mais, não daria passos.

Eu não escolhi ser assim.

Não escolhi aceitar a dor em vez de a viver, ainda que a viva todos os dias.

domingo, 5 de abril de 2015

Páscoa

Aparentemente hoje Jesus ressuscitou. Não sou católico, nem acredito na religião e na sua doutrina. Ainda assim vejo esta data como forma de ressuscitarmos pessoas. Se a lei de Lavoisier postulou que na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma então, irremediavelmente, haverá sempre um pedacinho de nós que aqui fica, já que daqui veio. Tudo isto nos é emprestado. Até o próprio sangue que nos corre pelas veias do nosso corpo, carregando o oxigénio que nos mantém vivos, pelo trabalho da hemoglobina, possui hoje o ferro que um dia pertenceu à morte de uma estrela. A morte para dar lugar à vida. Somos todos pequenos pedaços de algo maior, seja Deus, sejam Vários, ou outra Coisa qualquer, reconhecer a importância desta irmandade é fundamental para entender a vida

 A divindade em si, existe quando me deleito a contemplar um ramo de uma árvore que levemente baloiça sobre a brisa quente de uma tarde de Abril em que as folhas novas da Primavera dançam com o vento sobre um compasso que tento entender, ao som de umas notas orquestradas por algo invisível. Delicio-me a olhar para a minha gata que levemente lambe a sua delicada pata branca num torpor melancólico primaveril, sob a preguiça teimosa do sol embalador que nos deixa tombar os olhos. Se eu e ela não somos o mesmo. Se eu e ela que nos rendemos ao calor do mesmo astro ardente, perante a mesma espirelada galáxia, não somos o mesmo, então que somos nós? Gato e humano?

Frequentemente nos esquecemo de calcar a relva e ver a natureza. De sentir cada húmido pedaço de planta debaixo (curiosamente) da nossa planta dos pés. Que bom é calcar a relva. Que bom é o sol. Que bom é o silêncio. O nosso silêncio. Hoje ressuscitou. Ressuscitou na minha memória estes pedacinhos de todos nós, aqueles que já não me fazem companhia ao almoço que hoje recheou a casa de cores e odores, de conversas e olhares de quem se conhece e reconhece, espelhos entre espelhos, numa dança em que já se adivinham os passos de cada um. Ressuscitaram na relva, no Sol, nas folhas que brincavam ao vento, ou na música que tocou à refeição. Foram os adagios, com os violinos a cortar o ar. Foram as vozes francesas e belgas dos cantores de outrora que te fazem ressuscitar e que sempre farão. A Páscoa é isso mesmo. O amor ressuscita, seja o que for, seja quem for.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Caminhos rochosos


Aqueles que por mim passaram, foram deixando um rasto da sua presença nos pequenos detalhes deste frágil voar de borboleta que são as nossas vidas. Hoje vejo que não sou um, mas vários. Que não sou eu, nem o outro, mas outrem. Cada um que passou, com o seu polegar, ora leve, ora grosseiro, deixou um moldar do barro que hoje faz a escultura que não acaba e não acabará até estar concluída e finita, e quem sabe, até voltar a ganhar outra vida, outro sentido.

Nas pequenas actividades do quotidiano, há traços deles. Seja pelo hábito que ficou, seja pelo livro que hoje releio com saudade, ou até pelo gesto feito em palavras que me soam comuns a algo que já não é, já passou. Estas memórias assemelham-se a gigantes afloramentos rochosos no topo da montanha, soldados graníticos resistentes à erosão do tempo. São com elas que traçamos o mapa geográfico da nossa vida. São as rochas que param o tempo em nosso redor, como um intervalo estagnado dentro de algo que não pára, que é o tempo.

Estes seres graníticos, que nos olham sem olhar, do topo da montanha, relembram-nos do que vivemos e do que já passou. Os mais aguçados que ainda hoje nos fazem tropeçar na calçada invisível daquele caminho que julgávamos extinto, ensinam-nos que as feridas demoram a sarar e que qualquer momento nos serve de aprendizagem para futuras quedas. Os mais macios, já erodidos pelo vento e as lágrimas, com superfícies que agora reflectem a luz do Sol, onde já nos podemos recostar para o nosso leve voar de mente, servem-nos agora para deliciar do que já foi e já passou. Porque ainda que tudo esteja destinado ao fim, não quer dizer que não possamos sorrir com a lembrança do outrora. Perderemos tempo a chorar o fim da Primavera, senão olharmos para o futuro que nos aguarda com outra e outra Primavera diferente.

Hoje entendo que há males que vêm por bem. Que os locais mais inóspitos da nossa Terra são só mais protegidos por obstáculos. E que se não soubermos ser infelizes, nunca chegaremos a ver a felicidade que nos é apresentada todos os dias. Abri os olhos, para que a boca pudesse sorrir, porque afinal estavam certos, é de novo Primavera.


Onde as nuvens formam a pálida neblina do amanhecer lá na Serra, onde o silêncio só pode ser quebrado pelas nossas infames palavras e a sinfonia que se ouve é só e apenas do crescer das nossas almas, é onde agora, com atenção, no dispersar da neblina, se avistam as rochas cobertas do verde, do amarelo, do roxo, do azul  do vermelho, dessas tão inteligentes cores que não só atraem as abelhas para a polinização, mas atraem uma vez mais, o nosso sorriso. Agora sim, deitar-me-ei no amolecido granito já hospedeiro e brando pelo passar do tempo.

terça-feira, 17 de março de 2015

Amor a prazo

Na era do plástico e do descartável não seria de admirar que o amor fosse imune a este vírus que é o tempo, ou a sua escassez. Curiosamente, o tempo, tal como acontece quando as nossas mãos juntas em concha numa tentativa frustrada de albergar água, sofre o escoar da sua dimensão e volume pelas frinchas criadas pelos dedos até que o que dele resta no fundo, tal como a água, é feito refém da evaporação até a sua finitude. O tempo sempre teve pressa e sempre correu a nosso desfavor. Tempus fugit. A arte por detrás do tempo prende-se com a escolha inteligente da sua utilização. Sendo que a falta dela -utilização - é já por si só uma escolha e uma utilização. Tempus fugit.

Nesta nossa época, em tempos de múltiplas oportunidades e liberdades, opções de todas as cores com disponibilidades imediatas, ou substituições fáceis justificadas pela pressa de não perder o novo ou o alternativo, age-se com uma fome de viver e conhecer, em que tudo deve ser célere. Assim sendo, no amor, também somos vitimas e culpados desta nova rapidez. A dedicação que outrora existiria é agora vista como perda de tempo. E essa perda é considerada irracional. Tempus fugit. Os sentimentos que devem ser nutridos e cuidados, que devem constituir uma parte integrante do nosso tempo e que, aliás, deveriam ser a razão pela qual vivemos, são agora desprezados e/ou substítuidos por fracas imitações dos mesmo, como imitações de quadros em museus que facilmente são dectadas por olhos atentos de quem as observa.

Custa-me entender o olhar que hoje temos do mundo. Esta cultura do fácil e do agora afasta-nos do essencial e do verdadeiro. Custa-me perceber como vemos o amor de forma tão diferente. Como facilmente os anos se transformam em aborrecimento e toda a dedicação a uma só pessoa se torna, num momento só, em nada. Como pode ser mais fácil desistir-se de alguém e de algo que tanto tempo nos levou a construir, do que a ideia de construir de novo e do principio todo o sentimento que, como um castelo, foi construido pedra por pedra até atingir essa rara altura em que das torres já nos é díficil destinguir o chão?

A facilidade com que se salta de pessoa para pessoa, de sentimento para sentimento causa em mim um infinito terror do valor que nos é dado e do valor que damos aos outros. No fundo, no meio desta confusão de se ter pressa, mas procurar-se alguém para o futuro, somos os inimigos de nós próprios, adulando esta imagem de nós mesmos, como merecedores de mais e melhor, condenados a este individualismo e desapego pelos outros, tal como Narciso se afogou de tanto se amar. E, este entendimento que temos pelos outros, este buscar da verdade dos outros é tão pequeno que apenas acordamos com a nossa verdade, sem sequer nos percebermos a nós próprios e assim dormimos sem alguma vez termos percebido os outros. Um tempo em que tentar perceber o outro e o seu mundo, em que tentar decifrar as miríades entranhas de um universo tão complexo de alguém - porque no fundo cada um de nós representa um mundo aos olhos dos outros – tornou-se tão algo tão dispensável e desinteressante que acabou sendo substituido por assunções e julgamentos de como de facto sera a vida do outro. No fundo, não se procura saber nada, nem sobre os outros, nem sobre nós próprios.


O tempo determina também um prazo. E assim estamos todos sujeitos a este prazo, seja pelo tempo que aqui permanecemos, ou pelos prazos que o tempo nos impõe ao longo da vida pelo caractér temporário característico das coisas. Estes prazos são cada vez mais curtos, comparando, ironicamente, com o aumento do tempo de vida. O nosso presente já está no futuro e o hoje tornou-se no amanhã, numa frenética corrida pela novidade. Assim se chega a conclusão que o mesmo se passa no amor. Não existe tempo para construir o castelo, mas deseja-se tê-lo. Por outro lado, quando não avistamos bem o chão do alto das suas torres, já o chão nos parece tão mais interessante, tão cheio de novas experiências. O problema está novamente na forma como olhamos em redor. Tal como na utilizaçãodo tempo depende do nosso descernimento pela correcta visualização da verdadeira beleza, no topo do pináculo do nosso castelo se oharmos para cima, veremos que as formas das nuvens no céu são agora mais nítidas e mais belas, libertando-nos da curiosidade do chão.