Com um suave dançar de dedos nas
teclas um piano ganha o seu canto, fazendo vibrar as suas diferentes cordas
vocais, com pequenos martelos que, suavemente, embalam um ouvinte numa torrente
de ambíguas memórias. Como uma Nocturne de Chopin uma memória desenrola-se do
seu doce novelo, fazendo valer cada acorde, cada bemol, cada pausa, numa
apetitosa melodia que ora pode ser doce, ora amarga.
Incrível a forma como funciona. É
capaz de banhar todo o nosso pensamento, como uma só gota sensorial,
transportando-nos para outro qualquer sítio, ou mesmo outro qualquer Eu, no
passado. O passado, esse, reserva-nos tanto e tão pouco. Se por um lado nos
educa para o presente, com a sua voz autoritária e paternal, também nos entorpece
a razão, tornando-nos letárgicos ao presente, permitindo-nos navegar por o
grande oceano da nostalgia e da saudade. Saramago dizia: “O passado é um imenso
pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se
tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam,
porque precisam de saber o que há por baixo delas”.
Há, no entanto, em cada um de
nós, uma velha caixa, seja ela física ou imaterial, onde os objectos de outrora
são guardados por nós e a nós. Mergulhar nessa caixa é correr o risco de se
ser assoberbado por sorrisos, surdos gemidos, prantos, ou mesmo acesos de raiva
e incompreensão. É extraordinário como um simples pequeno papel pode inflamar
uma rede de neurónios tão bem preservada, capaz de transformar sinais físicos
em eléctricos, devolvendo uma emoção que em nada é tímida. E o cérebro, bom
entendedor, também ele nos devolve uma reacção física, seja ela uma lágrima, um
sorriso, ou mesmo, com o auxílio dos pulmões, um vultosa gargalhada.
As memórias que mais me
entorpecem, pela beleza que lhes é inerente, são as cartas. Sejam elas em
postais, ou grandemente letradas, representam sempre promessas de algo. Pelo
menos, promessas de fazer chegar algo a alguém. As cartas são as melhores
memórias, pois, em si, já são memórias quando as recebemos. Enquanto vasculho, no meio de tanto e de tudo, deparo-me com postais de uma tia querida. As cartas
são registos da nossa existência e dos outros. Viajantes incansáveis que
fizeram chegar tanto a muitos. São belas, porque tal como Hérmes, o mensageiro,
fazem chegar algo que aparenta tão pouco e que significa muito. E hoje, são
elas que me fazem chegar a mim a memória de outros tempos e de outras pessoas
que já foram. A memória de outros sentimentos que entretanto o tempo me fez
esquecer. A memória de promessas perdidas pela distância. A memória de amores
que já foram e que hoje olho para cada um deles e para as carta que leio com
duas caras.
Enquanto o piano vai cantando a
tua memória vai alimentando e acalentando esta colmeia eléctrica que é o meu
cérebro. Por fim o silêncio, até ver. Obrigado.
25-11-14
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