segunda-feira, 24 de novembro de 2014

Memórias...

Com um suave dançar de dedos nas teclas um piano ganha o seu canto, fazendo vibrar as suas diferentes cordas vocais, com pequenos martelos que, suavemente, embalam um ouvinte numa torrente de ambíguas memórias. Como uma Nocturne de Chopin uma memória desenrola-se do seu doce novelo, fazendo valer cada acorde, cada bemol, cada pausa, numa apetitosa melodia que ora pode ser doce, ora amarga.

Incrível a forma como funciona. É capaz de banhar todo o nosso pensamento, como uma só gota sensorial, transportando-nos para outro qualquer sítio, ou mesmo outro qualquer Eu, no passado. O passado, esse, reserva-nos tanto e tão pouco. Se por um lado nos educa para o presente, com a sua voz autoritária e paternal, também nos entorpece a razão, tornando-nos letárgicos ao presente, permitindo-nos navegar por o grande oceano da nostalgia e da saudade. Saramago dizia: “O passado é um imenso pedregal que muitos gostariam de percorrer como se de uma auto-estrada se tratasse, enquanto outros, pacientemente, vão de pedra em pedra, e as levantam, porque precisam de saber o que há por baixo delas”.

Há, no entanto, em cada um de nós, uma velha caixa, seja ela física ou imaterial, onde os objectos de outrora são guardados por nós e a nós. Mergulhar nessa caixa é correr o risco de se ser assoberbado por sorrisos, surdos gemidos, prantos, ou mesmo acesos de raiva e incompreensão. É extraordinário como um simples pequeno papel pode inflamar uma rede de neurónios tão bem preservada, capaz de transformar sinais físicos em eléctricos, devolvendo uma emoção que em nada é tímida. E o cérebro, bom entendedor, também ele nos devolve uma reacção física, seja ela uma lágrima, um sorriso, ou mesmo, com o auxílio dos pulmões, um vultosa gargalhada.

As memórias que mais me entorpecem, pela beleza que lhes é inerente, são as cartas. Sejam elas em postais, ou grandemente letradas, representam sempre promessas de algo. Pelo menos, promessas de fazer chegar algo a alguém. As cartas são as melhores memórias, pois, em si, já são memórias quando as recebemos. Enquanto vasculho, no meio de tanto e de tudo, deparo-me com postais de uma tia querida. As cartas são registos da nossa existência e dos outros. Viajantes incansáveis que fizeram chegar tanto a muitos. São belas, porque tal como Hérmes, o mensageiro, fazem chegar algo que aparenta tão pouco e que significa muito. E hoje, são elas que me fazem chegar a mim a memória de outros tempos e de outras pessoas que já foram. A memória de outros sentimentos que entretanto o tempo me fez esquecer. A memória de promessas perdidas pela distância. A memória de amores que já foram e que hoje olho para cada um deles e para as carta que leio com duas caras.


Enquanto o piano vai cantando a tua memória vai alimentando e acalentando esta colmeia eléctrica que é o meu cérebro. Por fim o silêncio, até ver. Obrigado.




25-11-14

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