domingo, 26 de abril de 2015

Escolha

Sê brando comigo.
Não escolhi ser assim.

Gostaria de poder dizer que sou este e aquele, mas afinal de contas, sou mesmo isso, nada.
Um nada que é um todo. Um todo cheio de vazio no seu interior.

Estou partido em vários pedaços, retalhos de uma ideia, de um pensamento.
Mas até a praia paradisíaca é composta por mil grãos de areia.

Eu não escolhi ser assim.
Não escolhi ter o reflexo que vejo na poça de água.
Não escolhi  sentir isto, ou aquilo, ou nada.
Não escolhi fechar os olhos quando não queria ver.
Não escolhi amar, nem morrer.

Não provarei a dor que há em mim.
Deixarei passar como faz uma bela espectadora

Deixarei o vento soprar, pois ele sabe para onde vai e eu não.
Deixarei a chuva molhar e lavar o tempo.

Eu não escolhi ser assim.
Um todo que é nada constantemente.
Um chorrilho de disparates com sentido,
Um novelo sem ponta ou fim, emerenhado em si próprio,
Sofucado pelo seu próprio peso,
Em toneladas de pensamentos turvos,
Outros escuros e outros ainda mais escuros.

Eu escolhi ver. Escolhi ouvir. Escolhi provar.
Escollhi fazê-lo em frente, sem que paisagens de trás me distraissem.

Quando me voltei, segui em frente.
Não deixei mais espaço ao olhar, nem ao pensar.
Porque se chorasse mais, faria oceanos.
Se pensasse mais escreveria livros.
Se me demorasse mais, não daria passos.

Eu não escolhi ser assim.

Não escolhi aceitar a dor em vez de a viver, ainda que a viva todos os dias.

domingo, 5 de abril de 2015

Páscoa

Aparentemente hoje Jesus ressuscitou. Não sou católico, nem acredito na religião e na sua doutrina. Ainda assim vejo esta data como forma de ressuscitarmos pessoas. Se a lei de Lavoisier postulou que na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma então, irremediavelmente, haverá sempre um pedacinho de nós que aqui fica, já que daqui veio. Tudo isto nos é emprestado. Até o próprio sangue que nos corre pelas veias do nosso corpo, carregando o oxigénio que nos mantém vivos, pelo trabalho da hemoglobina, possui hoje o ferro que um dia pertenceu à morte de uma estrela. A morte para dar lugar à vida. Somos todos pequenos pedaços de algo maior, seja Deus, sejam Vários, ou outra Coisa qualquer, reconhecer a importância desta irmandade é fundamental para entender a vida

 A divindade em si, existe quando me deleito a contemplar um ramo de uma árvore que levemente baloiça sobre a brisa quente de uma tarde de Abril em que as folhas novas da Primavera dançam com o vento sobre um compasso que tento entender, ao som de umas notas orquestradas por algo invisível. Delicio-me a olhar para a minha gata que levemente lambe a sua delicada pata branca num torpor melancólico primaveril, sob a preguiça teimosa do sol embalador que nos deixa tombar os olhos. Se eu e ela não somos o mesmo. Se eu e ela que nos rendemos ao calor do mesmo astro ardente, perante a mesma espirelada galáxia, não somos o mesmo, então que somos nós? Gato e humano?

Frequentemente nos esquecemo de calcar a relva e ver a natureza. De sentir cada húmido pedaço de planta debaixo (curiosamente) da nossa planta dos pés. Que bom é calcar a relva. Que bom é o sol. Que bom é o silêncio. O nosso silêncio. Hoje ressuscitou. Ressuscitou na minha memória estes pedacinhos de todos nós, aqueles que já não me fazem companhia ao almoço que hoje recheou a casa de cores e odores, de conversas e olhares de quem se conhece e reconhece, espelhos entre espelhos, numa dança em que já se adivinham os passos de cada um. Ressuscitaram na relva, no Sol, nas folhas que brincavam ao vento, ou na música que tocou à refeição. Foram os adagios, com os violinos a cortar o ar. Foram as vozes francesas e belgas dos cantores de outrora que te fazem ressuscitar e que sempre farão. A Páscoa é isso mesmo. O amor ressuscita, seja o que for, seja quem for.

quinta-feira, 2 de abril de 2015

Caminhos rochosos


Aqueles que por mim passaram, foram deixando um rasto da sua presença nos pequenos detalhes deste frágil voar de borboleta que são as nossas vidas. Hoje vejo que não sou um, mas vários. Que não sou eu, nem o outro, mas outrem. Cada um que passou, com o seu polegar, ora leve, ora grosseiro, deixou um moldar do barro que hoje faz a escultura que não acaba e não acabará até estar concluída e finita, e quem sabe, até voltar a ganhar outra vida, outro sentido.

Nas pequenas actividades do quotidiano, há traços deles. Seja pelo hábito que ficou, seja pelo livro que hoje releio com saudade, ou até pelo gesto feito em palavras que me soam comuns a algo que já não é, já passou. Estas memórias assemelham-se a gigantes afloramentos rochosos no topo da montanha, soldados graníticos resistentes à erosão do tempo. São com elas que traçamos o mapa geográfico da nossa vida. São as rochas que param o tempo em nosso redor, como um intervalo estagnado dentro de algo que não pára, que é o tempo.

Estes seres graníticos, que nos olham sem olhar, do topo da montanha, relembram-nos do que vivemos e do que já passou. Os mais aguçados que ainda hoje nos fazem tropeçar na calçada invisível daquele caminho que julgávamos extinto, ensinam-nos que as feridas demoram a sarar e que qualquer momento nos serve de aprendizagem para futuras quedas. Os mais macios, já erodidos pelo vento e as lágrimas, com superfícies que agora reflectem a luz do Sol, onde já nos podemos recostar para o nosso leve voar de mente, servem-nos agora para deliciar do que já foi e já passou. Porque ainda que tudo esteja destinado ao fim, não quer dizer que não possamos sorrir com a lembrança do outrora. Perderemos tempo a chorar o fim da Primavera, senão olharmos para o futuro que nos aguarda com outra e outra Primavera diferente.

Hoje entendo que há males que vêm por bem. Que os locais mais inóspitos da nossa Terra são só mais protegidos por obstáculos. E que se não soubermos ser infelizes, nunca chegaremos a ver a felicidade que nos é apresentada todos os dias. Abri os olhos, para que a boca pudesse sorrir, porque afinal estavam certos, é de novo Primavera.


Onde as nuvens formam a pálida neblina do amanhecer lá na Serra, onde o silêncio só pode ser quebrado pelas nossas infames palavras e a sinfonia que se ouve é só e apenas do crescer das nossas almas, é onde agora, com atenção, no dispersar da neblina, se avistam as rochas cobertas do verde, do amarelo, do roxo, do azul  do vermelho, dessas tão inteligentes cores que não só atraem as abelhas para a polinização, mas atraem uma vez mais, o nosso sorriso. Agora sim, deitar-me-ei no amolecido granito já hospedeiro e brando pelo passar do tempo.