quinta-feira, 29 de outubro de 2015

É com a morte que me lembro da vida

Apenas me lembro vivo quando sou assolado pelas foices da morte. Consigo-me então lembrar da minha existência e, mais ainda, da minha consistência orgânica, ditada pelas regras biológicas de um principio e um fim. Lembro-me que pouco mais sou que um fluido comprimido entre barreiras de osso, musculo e pele numa organização que ainda hoje faz maravilhar qualquer curioso pela sua harmonia e fluidez. Um liquido em transformação constante, revolto no seu interior, que mantém a outra parte não material que somos nós ou aquilo que é a nossa consciência. É com a morte que me lembro que o tão perfeito sistema foi desenhado para falhar um dia. Que a vida é um janela aberta num dia de verão, mas que deve ser fechada ao cair da noite para evitar o esfriar do anoitecer.

O meu avô costumava dizer que “andamos aqui a arrastar a carcaça”. Pois se de facto nos tornamos ilimitados pela nossa mente, somos ainda dependentes desta matéria que nos foi emprestada com um prazo de validade do qual não sabemos adivinhar e com o qual não podemos contar. Uma eternal dúvida se de facto um fim é um fim, ou se um fim é um inicio, tal como o Outono nos leva as folhas para mais tarde nos recompensar com outras cores em tempos mais primaveris. Se pelo menos pudéssemos fazer planos calculados Segundo o dia em que fica então terminada, pergunto-me como seria então a vida. Aliás, pergunto-me agora se, mesmo não sabendo, como devo planear a minha vida se os seus fios são tão frágeis como as sementes de dente-de-leão, mas no entanto nos agarram tão fortemente à terra pelas raízes mais fortes de uma árvore que parece tão frágil.

Dizem que a morte é apenas mais uma etapa desta viagem. Se assim o é, devo dizer que desconheço o seu destino e começo a duvidar de que malas hei-de levar. E se o destino é o nada, então qual o propósito de sequer as fazer? No fundo será como partir num comboio sem destino, sem saber as paragens e chegar ao final da linha sem saber, com malas vazias, pois já não lembramos, nem sabemos lembrar o que nelas havia. Se assim for, a morte é injusta, mas pior ainda será a vida que nos mostrou a sua beleza para que no fim nem sequer sejamos capazes de a lembrar. Uma fugaz visão da luz, como o homem da caverna que certamente depois de ver a Luz, nunca mais se contentará com a sombra.


Nas manhas de verão, voltamos a abrir a janela para deixar entrar o Sol que nasce de manha, na esperança que nos aqueça o coração esfriado pela geada. Talvez neste fugaz intervalo entre o amanhecer e anoitecer possamos ver as Luzes que pelo mundo brilham. E que neste incessante pulsar dos dias fique sempre a esperança de uma Primavera no fim de um Inverno rigoroso.

Um comentário:

andré maia disse...

«...Se assim for, a morte é injusta, mas pior ainda será a vida que nos mostrou a sua beleza para que no fim nem sequer sejamos capazes de a lembrar.»

...

Será? Talvez a morte não seja injusta. Talvez seja a consequência lógica - e não estou aqui a falar das regras biológicas de um princípio e de um fim - de um futuro que há-de permanecer como uma constante interrogação.

Uma viagem certamente sem destino, já que essa última paragem nunca será observada pelos olhos que são apenas matéria. Será que, depois, com outros olhos, a Luz e a Sombra farão sentido?

Perguntas sem resposta plausível ou, sequer, intuitiva. Prefiro, contudo, imaginar que a vida não pode resumir-se a "isto". Não podemos limitar-nos a permanecer no pensamento dos que vão continuar por mais algum tempo, até porque não temos a garantia de que não seremos esquecidos.

O que sabemos, como escreveu Álvaro de Campos, é que «...depois a conversa aligeira-se quotidianamente, e a vida de todos os dias retoma o seu dia...»

Pode ser que, afinal, a morte não seja o fim do caminho. Pode ser, tão-só, aquela paragem em que vamos ter que mudar de linha. A viagem, essa, não pode concluir-se no vazio. Não pode ser assim tão pobre!...