Apenas me lembro vivo quando sou
assolado pelas foices da morte. Consigo-me então lembrar da minha existência e,
mais ainda, da minha consistência orgânica, ditada pelas regras biológicas de
um principio e um fim. Lembro-me que pouco mais sou que um fluido comprimido
entre barreiras de osso, musculo e pele numa organização que ainda hoje faz
maravilhar qualquer curioso pela sua harmonia e fluidez. Um liquido em
transformação constante, revolto no seu interior, que mantém a outra parte não
material que somos nós ou aquilo que é a nossa consciência. É com a morte que
me lembro que o tão perfeito sistema foi desenhado para falhar um dia. Que a
vida é um janela aberta num dia de verão, mas que deve ser fechada ao cair da
noite para evitar o esfriar do anoitecer.
O meu avô costumava dizer que
“andamos aqui a arrastar a carcaça”. Pois se de facto nos tornamos ilimitados
pela nossa mente, somos ainda dependentes desta matéria que nos foi emprestada
com um prazo de validade do qual não sabemos adivinhar e com o qual não podemos
contar. Uma eternal dúvida se de facto um fim é um fim, ou se um fim é um
inicio, tal como o Outono nos leva as folhas para mais tarde nos recompensar
com outras cores em tempos mais primaveris. Se pelo menos pudéssemos fazer
planos calculados Segundo o dia em que fica então terminada, pergunto-me como
seria então a vida. Aliás, pergunto-me agora se, mesmo não sabendo, como devo
planear a minha vida se os seus fios são tão frágeis como as sementes de
dente-de-leão, mas no entanto nos agarram tão fortemente à terra pelas raízes
mais fortes de uma árvore que parece tão frágil.
Dizem que a morte é apenas mais
uma etapa desta viagem. Se assim o é, devo dizer que desconheço o seu destino e
começo a duvidar de que malas hei-de levar. E se o destino é o nada, então qual
o propósito de sequer as fazer? No fundo será como partir num comboio sem
destino, sem saber as paragens e chegar ao final da linha sem saber, com malas
vazias, pois já não lembramos, nem sabemos lembrar o que nelas havia. Se assim
for, a morte é injusta, mas pior ainda será a vida que nos mostrou a sua beleza
para que no fim nem sequer sejamos capazes de a lembrar. Uma fugaz visão da
luz, como o homem da caverna que certamente depois de ver a Luz, nunca mais se
contentará com a sombra.
Nas manhas de verão, voltamos a
abrir a janela para deixar entrar o Sol que nasce de manha, na esperança que
nos aqueça o coração esfriado pela geada. Talvez neste fugaz intervalo entre o
amanhecer e anoitecer possamos ver as Luzes que pelo mundo brilham. E que neste
incessante pulsar dos dias fique sempre a esperança de uma Primavera no fim de
um Inverno rigoroso.
Um comentário:
«...Se assim for, a morte é injusta, mas pior ainda será a vida que nos mostrou a sua beleza para que no fim nem sequer sejamos capazes de a lembrar.»
...
Será? Talvez a morte não seja injusta. Talvez seja a consequência lógica - e não estou aqui a falar das regras biológicas de um princípio e de um fim - de um futuro que há-de permanecer como uma constante interrogação.
Uma viagem certamente sem destino, já que essa última paragem nunca será observada pelos olhos que são apenas matéria. Será que, depois, com outros olhos, a Luz e a Sombra farão sentido?
Perguntas sem resposta plausível ou, sequer, intuitiva. Prefiro, contudo, imaginar que a vida não pode resumir-se a "isto". Não podemos limitar-nos a permanecer no pensamento dos que vão continuar por mais algum tempo, até porque não temos a garantia de que não seremos esquecidos.
O que sabemos, como escreveu Álvaro de Campos, é que «...depois a conversa aligeira-se quotidianamente, e a vida de todos os dias retoma o seu dia...»
Pode ser que, afinal, a morte não seja o fim do caminho. Pode ser, tão-só, aquela paragem em que vamos ter que mudar de linha. A viagem, essa, não pode concluir-se no vazio. Não pode ser assim tão pobre!...
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