quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Viver às escuras



Quando ia para minha aula, encontrei um senhor invisual a espera do metro na Paragem de São bento na mesma direcção em que eu ia viajar. O senhor esperava, tacteando o chão com a sua bengala metálica nos relevos da linha amarela delimitadora da zona de perigo ao aproximarmo-nos da linha.

Eu, que me dirigi para o local exacto onde a porta o metro ia parar – informação dada por uma amiga (que nunca falha) – fiquei a observar o senhor invisual. Comecei a ser envolvido numa compaixão imensa.

A primeira coisa que pensei foi como é difícil ser-se invisual…como é difícil cair e levantar sozinho. Viver num mundo repleto de imagens e não poder vê-las. É certo que é complicado. O órgão sensorial principal, aquele que mais usamos, cria um fardo imenso, a quem o perder. Tudo é feito de imagens. Aliás, diz-se que uma imagem vale mais do que mil palavras. E este facto de mentira não tem nada. Basta pensarmos nos anúncios e nos media, sensibilizando, aliciando, comercializando tudo, e todos. Basta pensarmos nas tecnologias, cheias de imagens, símbolos, ecrãs, etc.

O que se segue no meu pensamento é que se eu fosse invisual, não poderia fazer o que faço, isto é, profissionalmente. Faço investigação científica e dependo totalmente da imagem. Vejo e analiso células e tecidos todo o dia, todos os dias. Aliás, chego mesmo a usar uma série de diferentes instrumentos para o fazer, tudo em prol da imagem perfeita, na melhor representação da realidade.

Imagens de fluorescência. Imagens de luz-clara. Imagens 3D.

Imagens.

O senhor ficou num local em que não dava acesso a uma porta do metro. Claro…ele não vê o elevador que está do outro lado da linha e que é sempre a minha referência para a porta do metro em que quero entrar. Desajeitadamente, ouvindo o som do metro em tons de campainha irritante avisadora de perigo, move-se para a frente, sempre com a sua bengala metálica. Bate no metro com ela. Atarantado, não sabe para que lado se há-de virar para chegar o mais rapidamente possível a uma porta.

Eu paro à frente da minha porta – agora aberta – entre o metro e o piso de mármore da paragem. Assim que dou intenções de retroceder para ajudar o senhor a entrar no metro, já várias pessoas o estavam a fazer. Rapidamente abro alas para o senhor poder entrar e ficar no lugar mais próximo para não ter obstáculos no seu caminho.

Encosto-me no metro e penso: porquê é que te queixas David? Olha vê! Sim, vê! Porque tu podes fazer isso! Vê como alguém que não pode ver, enfrenta a vida todos os dias. E enfrenta com o dobro, o triplo, o quádruplo dos obstáculos que tu tens. Os teus obstáculos talvez sejam pessoas, não no sentido físico e material, mas sim no psicológico e imaterial. Os teus obstáculos podem até ser situações complicadas e tal, chatices, qualquer coisa…Mas vê. Este senhor, enfrenta todos os dias obstáculos que a tua visão ultrapassa. Mais aqueles que tu já tens. Por não falar em toda a questão psicológica a volta da sua condição. Muito provavelmente é dependente de alguém. Existe grande probabilidade de já ter visto antes de não ver…

Enfim, não sei como será sentir esta escuridão envolta de nós. Bem sei que não precisámos de olhos para ver o que nos rodeia. Aliás, atreveria dizer que muito provavelmente vêem muito melhor do que aqueles que são visuais.

Chegamos a conclusão que aqueles que mais se queixam, são os que menos se deviam queixar. Uma amiga minha hoje disse-me: David, não nos podemos queixar, nós somos felizardos.


E é verdade. Nascemos aqui, não em Angola, numa família pobre, a morrer de fome. Só por isso, já somos abençoados e repletos de sorte. Aliás, creio que já tenhamos esgotado a nossa quota-parte de sorte…

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

Dia-a-dia


Um monstro peludo de dentes e unhas aguçadas começa o seu dia bem cedo de manhã. Por volta das sete horas, acorda do sono relaxado, qual diva, qual Deusa e, levemente, parando para se espreguiçar e esticar cada célula do seu corpo, vai-se dirigindo matreiramente para a cabeceira da cama… Enquanto o faz, começa logo de cedinho a aquecer a garganta, entoando sons tais, que quem ouvisse de fora, pensaria que afinal os dinossauros não tinha sido extintos há milhões de anos atrás. Este ritual culmina no inevitável acordar do seu pobre dono. Este, meio atordoado, lá se arrasta até à porta do quarto, pousando e arremessando cada pé como se de chumbo fossem feitos. Abre a porta e espera pacientemente que a Dona Gata se digne a deslocar-se até ele.

Uma vez fora do quarto, impiedosamente e com uma turbidez do olhar, este fecha a porta e cai na cama. Retraindo-se, contorcendo-se, ajeitando-se e puxando os lençóis para si, até que o sono rapidamente o envolvesse.

Passa uma hora e o despertador, desta vez não animal, mas sim robótico, toca. O pobre coitado tem pouco tempo para tocar, uma vez que o cérebro do David já está mais que habituado àquele som irritante. Aliás, tão irritante que quando o ouve sem ser para acordar, fica irritado e alterado, como uma reacção endógena, intrínseca na própria consciência – tal e qual como Pavlov descreveu.

Mas uma vez, lenta e forçosamente, David tira uma perna da cama.

O frio. E que frio. Durante a noite, o calor que libertou parece ter gerado um forno de 1000 graus Celsius. A sensação de saída do forno torna-se tudo, menos convidativa. Ao sentar-se na cama (que é obviamente a primeira coisa que faz depois de acordar, uma vez que não tem forças para nada mais) pensa: “que dia e hoje?” E pensa ainda: “não tenho de ir trabalhar, pois não?” E finalmente alguém que se encontrava muito escondido no interior de uma pequena gruta, num recanto escuro do cérebro, ergue a voz e diz: “sim David, tens sim seu idiota! Levanta-te que tens que tomar banho, vestir-te comer, arranjar o almoço, dar festas a gata, guardar o computador, arranjar a mochila para o ginásio e sair de casa para trabalhar, que faz bem!” David fica então perturbado pela intervenção contínua e desagradável daquela voz e responde: “está bem, estou a ir, mas cala-te, por favor!”.

E uma vez mais a inércia…essa reacção ao movimento que nunca entendeu quando estudava física no 3º ciclo, torna-se de fácil entendimento agora. Ao chegar a cozinha, articula uma série de sons que resultam nesta palavra: “oumm thiaa”. Na verdade acreditou que disse “Bom dia”,não fosse o dialecto Neanderthalesco, talvez tivesse dito realmente. Como todos os dias, enche um copo de água da torneira, coloca-o no microondas. Quando se ouvem os 3 “pis”, os quarenta segundos já passaram e no relógio do forno indica que já são sete e quarenta 8hora de ir tomar banho). Lentamente, David bebe a água morna acabada de aquecer (leu algures na Internet que água morna de manhã faz muito bem a…a tudo, parece, e desde então começou a praticar este pequeno hábito). A água aquece-lhe a garganta e após o banho já consegue falar (talvez a água ajude mesmo).

O inicio da manhã continua com as actividades rotineiras que a sua consciência muito fielmente citou. Tomar o pequeno-almoço, arrumar o computador, preparar o almoço, etc…
Nos entretantos, a sua mãe fala uma série de coisas que não entende. Nunca percebeu como é possível que alguém tenha tanta energia logo de manhã. É que energia e manhã são antónimos no sei dicionário. “Como será possível alguém os combinar?!”.

Entre pressas, corridas e tropeços na gata, toda a lista matinal fica pronta.

Sai de casa e sente o frio na cara (única local do corpo que não se encontra protegido pelos quilos de roupa que leva). Sorri ao ver o sol (ou pelo menos gosta de acreditar, porque na verdade faz uma cara péssima de quem não teve tempo para fechar as pupilas) e põe-se a caminho do metro.

No metro as pessoas são sempre as mesmas. Incrível como se pode apanhar metros vindos de todas as direcções e as pessoas serem todas as mesmas. Isto é, não são as mesmas, mas agem todas da mesma forma. David varre o olhar das pessoas à procura dos sentimentos. Enquanto a roupa, a maquilhagem, os adereços e afins podem esconder quase tudo, os olhos (espelhos da alma) não conseguem esconder nada. Ou se está feliz, ou se está preocupado, ou se está cansado, ou se está qualquer outra coisa, o que interessa é que os teus olhos vão-te denunciar.”

“Timmm tammmm” “Casa da Música”. Entre empurrões e chatices dirige-se às escadas rolantes. Incrível como existem demasiadas pessoas que não entendem que se podem gerar duas filas numa escada rolante e que, tal como as regras de trânsito, deve-se andar pela direita, para não embaraçar o trânsito. O problema deve estar mesmo no facto de as pessoas também não cumprirem esta regra na condução.
Mais uma viagem fantástica pelo autocarro, por vezes, com as mesmas pessoas do metro e, finalmente, a Vânia (nome dado por ele à voz da menina do autocarro) anuncia: “Planetário”.


"É aqui. Tenho de sair. São nove horas."





segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

Escrito na areia


Não foi há muito tempo que escrevemos promessas para a vida naquela praia.

Mas o vento levou-as.

Qualquer coisa no tempo faz com que seja impossível a eternidade. Será ele o culpado? O castelo de areia que construímos naquela tarde, cheio de palavras, gestos, histórias e sentimentos, foi o nosso lar. Mudámos as torres, construímos alas, aumentámos as fronteiras, cavámos um fosso e….

Mas a água levou-o.

E o resto? A água evapora-se, como sinal de desaparecimento. Já a areia, bem, sozinha desfaz-se em mil grãos. A magia que havia dos dois juntos, de uma união tão sólida, capaz de superar qualquer tempestade, tão depressa se constrói, como se desfaz. Na verdade, o que é que nos une? O que é que torna água e areia em algo tão sólido como uma amizade? Interesses comuns? Amor pelo outro? Qual é a água e a areia que mantêm o castelo em pé por tanto tempo? As palavras varridas pelo tempo? Essas fazem-me sorrir. A ilusão de que tudo dura e nada padece é só isso, ilusão.



Ainda assim, volto àquela praia. Vejo os sulcos de areia onde um dia se erguiam Castelos. Pego, sem olhar, na maior pedra, àquela que constituía parte do portão que dava entrada pelo fosso. Quando a alcanço, vejo a sombra da tua mão a tocar na minha. Talvez não seja tanta ilusão. Há castelos que se levantam após a destruição de uma batalha. Há outros que são relembrados para a eternidade.


16-1-12

domingo, 15 de janeiro de 2012

Assim se passa uma infância


O tempo corre mais rápido do que seria de esperar. Quando somos pequenos passamos tardes deitados na alcatifa de casa dos nossos avós a brincar com uma nave intergalática preta que viaja pelo espaço a velocidade da luz e dispara contra bases espaciais. Na verdade, o comando e o sofá continuam lá, mas a nave e a base espacial não. O tempo voa mais rápido que qualquer viagem intergalática. Os anos passam por nós sem darmos conta.
Consigo recordar todos os sonhos de criança que passei naquela casa. Consigo lembrar-me da magia da imaginação. Da felicidade de cada momento. De como aquela, agora, pequena casa parecia gigante. Sempre com segredos e mistérios por desvendar. Das conchas que não se podiam tocar. Do marfim por debaixo do sofá. Do chifre de rinoceronte. E de todas as esculturas com olhos fixados em nós a todo o momento.
Quando chegava a casa dos meus avós, a primeira coisa que fazia era descalçar-me. Talvez por isso é que hoje me sinto tão bem descalço. Livre dos sapatos, livre de tudo.
E não é a minha infância perdida, mas sim a minha infância ganha. Hoje consigo ver tudo o que ganhei, tudo o que aprendi com os meus avós. De todas as manhãs que passei no atelier do meu avô a criar, imaginar, sob o som das notas de alguma soprano que logo começava a cantar assim que se ligava o quadro da electricidade. Lembro-me das tintas, dos azulejos, do barro, sim do barro e também do macacão e da casa-de-banho pequenina que não sei bem porquê, me faz sorrir.


Fui feliz. Obrigado avós.

segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

já passou muito tempo, estou de volta



Como estamos a começar o Ano, acho que devemos reflectir sobre o ano que passou. Fazer um resumo mental dos bons e maus momentos. Perceber o que mudou, porque a cada ano que passa alguma coisa deve mudar. Perceber se crescemos. E perceber o que é preciso mudar no ano vindouro.
Para mim, esta música resume muita coisa da vida em si, mas também da minha vida e em particular deste ano que passei. Provavelmente vou-me identificar com esta música para o resto da minha vida, mas neste momento faz ainda mais sentido aquilo que ela diz.