Querido Avô,
A saudade, essa tão Portuguesa palavra
que só nós compreendemos, mais que o sentir falta de algo, é um sentimento com
o qual crescemos e não sabemos explicar. É uma mistura do que é bom com o que é
mau. Um dissabor melodioso, que nos permite chorar, tremer, soluçar, mas continuar
a querer sentir aquela amarga dor.
Perder alguém que nos observou de
perto, é perder parte de nós. Até hoje sufoquei só a possibilidade de pensar na
ausência. Hoje dói mais. Dizem que não há dias para chorar alguém. Não há dias
para se ter saudade de alguém. Que ela está presente e vem e volta quando quer
e aparece. E assim foi. Durante este ano, sombra silenciosa, intrometeu-se no
meu coração. Por vezes deixando um leve sorriso, outras um pequena e tímida lágrimas.
Mas noutras, um grande soluço e uma falta imensa.
Eu hoje choro. Choro-te, enquanto
ouço a banda sonora do “Mon oncle” de Jacques Tati que tantas vezes vimos em
conjunto. Relembro na personagem principal cada pequeno pedaço de ti. Mais do
que outra qualquer memória, todas estas notas da apetitosa melodia do filme
transportam-me para ti. O filme é quase todo ele passado em silêncio, tal com
os outros filmes do Charlot que víamos. Eu costumava observar-te quando estavas
em silêncio. Ficavas várias vezes absorto, dentro do teu mundo, franzindo a
testa, coçando a cabeça e pensado na próxima coisa que ias criar. Não há nada
mais bonito que essa memória, de te ver no Gerês, passeando pela casa com este
e aquele projecto, sempre ocupado.
Há um ano atrás desejei que te
fosses, que te apagasses e acabasse todo o teu sofrimento. Quis que não
tivesses de te sentir a deteriorar, como bem dizias: “Ando a arrastar o cadáver”.
Nunca me esquecerei da última vez que te vi. Perto da morte, cheguei a perto de
ti e beijei-te a testa e disse: “Adeus avô”. Hoje só te queria aqui por perto.
Disseram-me ontem que nada, nem
ninguém é insubstituível. E que cada parte de alguém está sempre em nós. Assim
o é. Perpetuamos a presença de alguém pela sua memória e porque hoje sou quem
sou, pelo que me deixaste. Tudo na vida tem o seu fim. E mesmo as bonitas
flores na jarra, com tons amarelados e brancos padecem perante os ventos do
tempo que nunca deixam de soprar. Mas como tu sabes, neste mistério que é a
vida, neste mistério que é a morte, haverá com certeza uma ordem: a da renovação.
Não somos substituíveis, pois permanecemos nos outros, na sua pele, nos seus
cabelos, nos seus olhos, na sua voz, na sua cabeça, mas esta dor de não te ter
aqui é-me consolada pela presença de outras pessoas e de outros sentimentos.
Gostava de te poder beijar
novamente, não aquele avô deitado no hospital, mas o avô que ensinou a moldar o
barro e criar obras de arte que hoje perpetuam a forma como tu sempre viste a
vida. A forma como conseguiste dar vida ao pó e à água e de eles ter renascido
algo que nunca terminará.
Esta é a carta que nunca te
consegui escrever. Mas há o ano atrás chorava por ter acabado o teu sofrimento.
Hoje choro por não te ter.
Hoje choro, mas não choro tudo.
Mas também, nunca ninguém chorou tudo o que tinha a chorar.
Com uma enorme saudade do teu
neto que te ama,
David
(23-12-14)